
O título que Cássio Aoqui (ingressante em Administração em 1999) escolheu para sua tese de doutorado, “Entre o Jardim Ângela e o Jardim Europa”, explica muito sobre esse Conselheiro da Sempre FEA. Nesta entrevista ele fala da experiência trabalhando em período integral enquanto cursava a FEA, da troca do sonho de riqueza material pelo terceiro setor e do amadurecimento de escolhas na pós-graduação.
Antes de entrar na FEA você já trabalhava. Como foi esse percurso e por que você decidiu estudar Administração?
Não foi como a maior parte dos meus amigos, que escolheu Administração porque não sabia o que fazer. Cresci vendendo tomate com meu pai na feira na Cachoerinha, na Brasilândia. Eu tinha muita vontade de ir além. Na cultura japonesa, educação é o mais importante de tudo, inclusive para romper o ciclo de pobreza. Sempre fui muito bom aluno. Fiz ensino médio técnico em Processamento de Dados porque não tinha curso de Administração na escola técnica federal, mas juntei minhas moedinhas e comprei um curso à distância em Administração, com apostilas.
Aos 16 anos, virei estagiário da Telesp. Por crescer em um cenário de escassez, eu queria ter acesso, viajar, ser rico e para isso eu achava que precisava estudar na melhor escola de negócios. Descobri que quem passava nas primeiras colocações na FGV ganhava bolsa e vi ali a minha tábua de salvação.
Mesmo passando na FGV em primeiro lugar e com bolsa integral, sua permanência foi inviável e você então optou pela universidade pública. Como isso aconteceu?
Apesar do sonho realizado, a FGV não era meu repertório. Eu não precisava pagar a mensalidade, mas não podia pagar nem os livros. A faculdade era em período integral e, quando a Telesp foi comprada pela Telefónica, fui chamado para uma vaga fixa em uma área ligada a programação, recebendo um salário que meu pai jamais sonhou.
Desisti do sonho de estudar na FGV, mas tinha sido aprovado no curso noturno da FEA em segundo lugar e encarei como uma segunda opção mesmo.

Você iniciou a FEA trabalhando em período integral, tendo seu primeiro contato com o mundo corporativo. Como isso te afetou?
Naquele emprego eu descobri o que era vida corporativa, a agressividade do mundo corporativo. Eu odiava programar, estava dando tudo errado e eu vi que não tinha vocação. Hoje sei que tive ali uma primeira depressão e falo disso muito abertamente.
Eu já era arrimo de família, mas minha mãe em sua sabedoria percebeu que eu não estava normal e me incentivou a pedir demissão. Me demiti e fui fazer o primeiro mochilão da minha vida, de ônibus pelo Nordeste.

Quando retornei, vi no mural da FEA um concurso para trainees no jornal A Folha de S. Paulo. Eu gostava de escrever e fui sem saber o salário que receberia se fosse contratado. Na minha turma de trainees, a editora percebeu que eu era fora da curva, que não vinha de escola de elite. Ela queria trazer uma visão diferente e eu me destaquei porque conseguia encontrar personagens para as reportagens.
Mas eu ia para a FEA dormindo no ônibus, após trabalhar o dia inteiro. Às vezes perdia aula porque tinha fechamento do jornal e depois ia conversar com o professor, virava madrugada estudando para as provas. Fui um aluno bastante ausente durante a graduação.
Sua passagem pela FEA foi marcada por contradições na vida pessoal e profissional, mas também por viagens pela Europa, Ásia, EUA e trabalho no Japão. Como foi esse período?
Eu estava enfrentando duas questões importantes. Uma é se seria administrador ou jornalista. O sonho de menino de ser rico ainda existia, mas eu estava crescendo rapidamente no jornal e adorava jornalismo. E eu ainda namorava meninas, tinha a contradição da orientação sexual.
Eu nunca tinha ido ao exterior, não tinha repertório ou cultura e tinha grande vontade de acessar lugares e espaços. Fiz um plano de dois anos com uma amiga que conheci na FEA, Erica Ysaiama (ingressante em Administração em 1999). Juntamos dinheiro, pedimos demissão, trancamos a FEA e fomos fazer um mochilão pela Europa. Moramos seis meses em uma barraca e depois fomos trabalhar em fábrica no Japão. Erica voltou ao Brasil e eu fui viajar sozinho pelo Sudeste Asiático. Completei um ano e meio de mochilão. Hoje já conheço 97 países!


Como foi seu retorno ao Brasil e o começo da sua carreira no terceiro setor?
Voltei decidido a ser administrador e cheguei à última etapa de um processo seletivo, mas desisti porque era longe e eu ainda precisaria ir à FEA de noite. Minha ex-chefe me falou de uma vaga na editoria de negócios e acabei dando mais uma chance ao jornalismo.
Na época, a Folha fez uma parceria com a Fundação Schwab no Prêmio Empreendedor Social, que caiu no meu colo porque eu editava negócios. Foi aí que entrei no mundo social, mas eu cresci em uma realidade que tinha muito a ver com isso, de escola pública, favela, pessoas negras.

Como fiquei responsável pelo prêmio, viajei por todos os estados do Brasil, conhecendo iniciativas na Amazônia, no sertão, nas comunidades do Rio, na quebrada, no Pantanal… foi uma escola e um privilégio me inspirar com essas pessoas.
Pedi demissão da Folha, mas por muitos anos continuei cuidando do prêmio como consultor. Junto com um grupo de amigos, criei em 2011 a consultoria ponteAponte, com foco socioambiental e que se ressignificou com inovação social. Foram 13 anos de uma história linda de investimento social privado e filantropia. No ano passado saí da sociedade, mas continuo atuando como conselheiro e consultor independente.
Você concluiu o mestrado na USP e agora se dedica a um doutorado interdisciplinar focado em mudança social. Como se deu esse amadurecimento no mundo acadêmico?
Me apaixonei por empreendedorismo socioambiental e descobri porque estava fazendo FEA: não para era ser rico ou CEO de banco, mas para unir esse lado relacional e de comunicação, que eu gosto tanto, com o lado de gestão.
Sou muito crítico à forma como a gente vê a educação e acho que a gente precisa avançar bastante. É fundamental formar pessoas cidadãs políticas para além de executivas. A gente fala muito pouco sobre isso ainda.
Em 2013, voltei para a FEA para um mestrado no Centro de Empreendedorismo Social e Administração do Terceiro Setor (CEATS/USP). Minha orientadora, Profa. Dra. Rosa Maria Fischer (Conselheira Consultiva da Sempre FEA), me incentivou a fazer curso de Urbanismo na FAU, curso de Direitos Humanos na Sanfran, aproveitando o melhor da USP, que coloca todo o sistema à sua disposição.
No doutorado, fui para o programa interdisciplinar Mudança Social e Participação Política (Promuspp/EACH-USP), que oferece um pouco mais de liberdade poética para pensar a construção do conhecimento.
O título da minha tese é “Entre o Jardim Ângela e o Jardim Europa”, que é o lugar onde eu estou. Não pertenço e não tenho lugar de fala em nenhum dos dois, mas eu transito entre esses extremos. Este é o meu lugar e a minha vocação.
Assim como a Sempre FEA, sua atuação é focada em redução de desigualdades e estabelecimento de conexões. Como isso se dá na prática?
Hoje atuo como consultor para famílias de alto patrimônio, ajudando a fazer estratégia de filantropia a partir de um caminho que fui aprendendo, com base em confiança.
As metodologias das empresas não são necessariamente as melhores para a mudança social. O tecido social é muito mais complexo e tem um lado político que é importante. Esse é lado Jardim Europa do trabalho, mas também atuo nos outros “jardins”, com potencialização e fortalecimento institucional de coletivos periféricos, ajudando com gestão, planejamento, estratégia, captação de recursos, que é o lado FEA.
Tento entender o que os territórios precisam e atuo para que esses lados da ponte se conectem mais. Fico nesses extremos tentando pensar em caminhos para que eles se encontrem e que a gente reduza desigualdades, que é o que importa.

Qual é o seu envolvimento na Sempre FEA?
Conheci a Sempre FEA por meio do amigo Leandro Dalmarco (ingressante em Administração em 2000), que me convidou a participar como voluntário, pois ele sabia que além de trabalhar com questões sociais, eu tinha um senso de retribuição por todo o dinheiro público investido na minha formação.
Dez anos depois do mestrado, foi muito legal voltar e ver que a FEA estava um pouco mais diversa, que tinha a FEA Social, que houve uma entidade para apoiar a comunidade LGBT.
A partir da metodologia que eu desenvolvia na ponteAponte, o primeiro edital da Sempre FEA, em 2020, foi uma cocriação com Andrea Andrezo (ingressante em Contabilidade em 1994 e atual Presidente do Conselho da Sempre FEA) e Marcelo Risso (ingressante em Administração em 2000 e atual Presidente da Sempre FEA). Comecei como voluntário nos editais, fui convidado para integrar o Comitê de Diversidade, Equidade e Inclusão e depois o Conselho de Administração.
Sempre que posso, trago um pouco do meu repertório, de que esses espaços de direção são limitados para pessoas que vieram de classes mais baixas. A gente precisa ter mais pessoas negras, a gente precisa ter mais pessoas com deficiência em espaços de decisão e precisa que isso reverbere na FEA e na sociedade. Esta é a nossa missão.