
Após a adolescência focada em atividades extracurriculares que complementassem seu aprendizado na escola pública, Kayque Ivamberto consolidou sua atuação como voluntário e foi reconhecido como líder comunitário em um programa do governo dos EUA. Ingressou em Contabilidade na FEA em 2020 e participou das trilhas de desenvolvimento do Centro de Carreiras da Sempre FEA. Com uma campanha de financiamento coletivo apoiada de forma direta por membros da Associação, Kayque hoje faz um intercâmbio na EDHEC Business School, na França. Ele conta sua trajetória nesta entrevista.


Você é o terceiro de quatro filhos e estudou somente em escola pública, na Zona Sul de São Paulo. Como foi sua busca por oportunidades de desenvolvimento?
Eu sempre fui curioso e extremamente engajado nas atividades escolares, mas também sabia das limitações do ensino público. Apesar de ter facilidade em aprender o conteúdo das disciplinas e possuir notas altas, desde criança eu era consciente que ser o melhor aluno da sala nunca seria o suficiente e, por conta disso, tinha receio de não saber informações do mundo ao meu redor, mesmo que não fossem conhecimentos cobrados em sala de aula.
Minha mãe, que abdicou da carreira para cuidar de mim e dos meus irmãos, dizia que estudar era a única minha obrigação, mas eu era tão feliz somente estudando que ela nem precisava se preocupar. A discrepância entre o ensino público e o privado no Brasil sempre foi nítida e aprender com professores desmotivados, por não serem valorizados em suas profissões, era um lembrete diário dessa realidade. E ainda que eles fossem os meus maiores incentivadores e acreditassem no meu potencial, eu não sabia aonde poderia chegar ou quais oportunidades eu poderia ter, de fato.
Sempre tive múltiplos interesses e não podia explorá-los completamente, por isso eu estava desacreditado da educação. Muito do que eu aprendia na escola era o mínimo para um conhecimento básico. Como não tinha cobrança e meus estímulos eram limitados, fui por tentativa e erro.
Aos 12 anos, comecei a frequentar aulas de teatro. Logo depois, ingressei em eletrônica na ETEC Takashi Morita durante o ensino médio e, por influência de amigos, me tornei escoteiro. Durante este período, eu conheci o projeto social Cidadão Pró-Mundo, fundado no Capão Redondo, que mudou minha vida.
Como esse projeto direcionou sua trajetória?
Eu sabia que falar inglês era importante, mas não sabia como seria útil, pois todos os benefícios eram muito abstratos quando eu era criança. Enquanto cursava o ensino médio e técnico em período integral, cursava inglês na Cidadão Pró-Mundo aos sábados. Estudei seis anos até conseguir meu certificado de proficiência. Ali vi uma chance de me destacar, de estudar fora.
No início, perdi a chance de cursar um ano de high school nos EUA com tudo pago por não ter um bom nível de inglês, mas fui insistindo. Depois de formado, me tornei professor voluntário, diretor da unidade onde fui aluno e fui eleito associado aos 22 anos. Durante os anos em que fui voluntário, meu maior orgulho foi formar meus alunos e vê-los se comunicar em inglês fluentemente, serem aprovados nas melhores faculdades e se tornarem mais confiantes.

Foram 10 anos de trajetória até ser reconhecido como líder pelo governo dos EUA, participando do Programa de Intercâmbio de Engajamento Comunitário do Departamento de Estado (Community Engagement Exchange Program – CEE).
Após terminar o ensino médio, se passaram três anos até você entrar na faculdade. Como foi seu percurso até a FEA?
Assim que terminei o ensino médio, uma professora (teacher Leandra) me indicou para uma vaga de Jovem Aprendiz em uma multinacional. Foi a primeira vez que o vi o inglês dar resultado, pois a vaga exigia o conhecimento da língua.
Perto do encerramento do contrato, meu chefe disse que poderia me contratar como estagiário, mas eu precisaria entrar na faculdade. Era no meio do ano, fora do período dos vestibulares, e eu estava empenhado em estudar fora. Decidi não seguir como estagiário. Saí de casa e fui contratado por uma empresa de auditoria.
Como não avancei com o sonho de estudar fora naquele momento, decidi fazer o Enem. Escolhi Contabilidade pois o meu fascínio por tecnologia me levou a querer saber mais sobre como as empresas faziam para serem tão grandes e lançarem produtos tão amados pelas pessoas. Eu estava dentro do ônibus, voltando para casa, quando recebi o e-mail de aprovação na USP.

Sua chegada à FEA coincidiu com a chegada da pandemia. Como isso te afetou?
Os primeiros dias foram inesquecíveis, mas me encontrei em uma situação difícil. Meu gestor não permitiu que eu saísse mais cedo do trabalho para chegar à faculdade no horário. Eu não podia ficar sem trabalhar e fiquei arrasado, sem saber o que fazer.
Daí veio a pandemia e a empresa não forneceu modem de internet nem computador e assim eu percebi que seria demitido. Por algumas semanas, acompanhei as aulas no Zoom com dificuldade, pois morava em uma região com pouco acesso à banda larga fixa e o 4G não dava conta.
Após dois anos de aulas remotas, a USP retornou às aulas presenciais. E apesar de ter sido membro de entidades como a FEA Social e a USP Debate durante a quarentena e ter feito amizades, a quebra de expectativa tinha sido enorme. Durante o primeiro semestre de 2022, minha saúde mental estava tão instável que eu não sentia vontade de fazer nada, nem de correr, que é algo que eu amo fazer. Por vezes, eu ia até o ponto de ônibus, desistia e voltava para casa.
Eu havia aplicado para o intercâmbio do governo americano, mas estava desesperançoso. Quando veio a resposta definitiva, meu estado mental mudou. Finalmente toda minha trajetória começou a fazer sentido. Percebi que não era somente sobre a pandemia, mas sobre todo o esforço, trabalho e anos de dedicação que, na minha mente, não estavam levando aos resultados que eu queria.
Como foi a experiência nesse programa de liderança nos EUA?
Foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Eu estava onde sempre quis estar: ao lado de líderes de vários países, discutindo soluções para problemas em nossas comunidades. Pude impactar mais vidas através de aulas de inglês para imigrantes e participar de atividades voltadas aos jovens da comunidade latina através da Universidad Popular, em Chicago. Também tive a oportunidade de desenvolver um programa de longo prazo para a Cidadão Pró-Mundo e o melhor de tudo: chegar mais perto da resposta sobre o que eu queria ser quando crescesse.

Após voltar ao Brasil em meados de 2023, você foi aprovado para um intercâmbio acadêmico em Lille, na França. O que isso representa para você?
Mesmo tendo sido preparado para isso, tive um choque de realidade na volta. Era como retornar para um lugar onde eu não me reconhecia por completo. Um mundo menor de possibilidades. Então decidi aplicar pra EDHEC, e fui aprovado um mês após ter retornado dos EUA.
Eu estava muito empolgado, mas não tinha recursos para estudar na França e nem queria me expor e ser tão vulnerável fazendo uma campanha de arrecadação. Em março de 2024, comecei um estágio, mas eu me sentia estranho. Lembrei da vez que perdi a chance de cursar um ano de high school nos EUA por não falar inglês. Agora, eu tinha tudo o que precisava, menos os recursos financeiros.
De tanto trabalhar com números e valores bem altos na área de contabilidade, comecei a internalizar um pensamento: se em alguns minutos, eu vejo movimentações de milhares de reais acontecerem com tanta naturalidade, não é questão de possibilidade, mas de coragem. Aos poucos, comecei a contar para alguns amigos, fui amadurecendo a ideia, pesquisei formatos de arrecadação e, mesmo com frio na barriga, lancei a campanha de financiamento coletivo. Dois meses depois, aterrissava na França. Cheguei na EDHEC sendo um bom contador — da minha própria história.
Como você imagina sua atuação no futuro e seu papel no mundo?
Eu não consigo me definir pelos diplomas que possuo e, ainda que as especializações sejam importantes, é o conjunto das habilidades que eu tenho, e as que ainda irei desenvolver, que me fazem conquistar meus objetivos. Eu tenho feito o que me move, e tem dado certo.
Seja aprendendo sobre demonstrações contábeis, ensinando inglês, gerindo pessoas, debatendo, resolvendo problemas comunitários ou treinando para uma maratona, todas as experiências têm contribuído para me tornar uma pessoa melhor, mais preparada, mais adaptável. Prefiro me orgulhar de quem eu sou, não somente dos meus títulos. Nem sempre é sobre o que eu sei, mas sobre o que eu estou fazendo para chegar até onde eu quero.
Futuramente, eu ainda me vejo trabalhando em projetos de impacto, porém em escala global, desenvolvendo lideranças e implementando práticas de governança mais sustentáveis dentro das organizações. A boa notícia é que eu já faço isso, em menor escala, seja atuando da Cidadão Pró-Mundo enquanto associado, elaborando projetos financiados pelo governo norte-americano, fazendo parte dos comitês de seleção de intercâmbios, ou até mesmo criando conexões internacionais enquanto estudo na EDHEC. E a lista vai crescendo a cada ano, pouco a pouco.
Mesmo que eu não saiba a diferença que eu faço na vida das pessoas que cruzam o meu caminho, elas sabem, e é isso o que importa.
Sempre fui e sempre serei multidisciplinar, e é claro, Sempre FEA.